Os Sonhos como Realização de Desejo

Pedro Pazzini
6 min readJun 16, 2021

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“Eu mesmo não sei com que sonham os animais. Mas um provérbio, para o qual minha atenção foi despertada por um de meus alunos, alega realmente saber. “Com que”, pergunta o provérbio, “sonham os gansos?” E responde: “Com milho”. Toda a teoria de que os sonhos são realizações de desejos se acha contida nessas duas frases.” (FREUD, 1900 pág 98)

É possível se questionar se os sonhos podem ter alguma significância terapêutica. É possível se deparar também com terapeutas e analistas que explicitamente orientam a seus pacientes que contem os seus sonhos. Pensemos um pouco sobre esta questão aqui.

Os sonhos são um fenômeno muito interessante e que vem sendo pensado e estudado ao longo dos séculos de diversas e distintas maneiras. Houve quem disse, e há ainda quem diga, que eles são uma forma de intervenção espiritual, que tem um significado inclusive premonitório muitas vezes, e há quem diga também, com muito mais frequência, que eles não tem significado algum. Quanto a primeira posição deixo a outros campos, já quanto a segunda, a nego veementemente. Os sonhos tem sim significado. Os sonhos não só tem significado como falam de nós mesmos; ainda mais, falam de um nós mesmos ao qual não temos conhecimento e nem controle, mas que se mostra e se exibe dentro dessas mil possibilidades de histórias, narrativas, personagens, falas e sentimentos do sonhar.

“Mas como assim um nós mesmos que não conhecemos?” Questiona-se. Pensemos através da seguinte citação:

“[…] por J. G. E. Maass, o filósofo (1805, [1, 168 e 179]), citado por Winterstein (1912): “A experiência confirma nossa visão de que sonhamos com maior frequência com as coisas em que se centralizam nossas mais vivas paixões. E isso mostra que nossas paixões devem ter influência na formação de nossos sonhos. O homem ambicioso sonha com os lauréis que conquistou (ou imagina ter conquistado) ou com aqueles que ainda tem de conquistar: já o apaixonado se ocupa, em seus sonhos, com o objeto de suas doces esperanças… Todos os desejos e aversões sensuais adormecidos no coração podem, se algo os puserem em movimento, fazer com que o sonho brote das representações que estão associadas com eles, ou fazer com que essas representações intervenham num sonho já presente”. (FREUD, 1900 pg 17)

A resposta então é, uma das faces do sonho é a de que com frequência sonhamos com aquilo que desejamos, ou ainda nas palavras de Freud, os sonhos são realizações de desejos.

Parece fácil e suficiente dizer isso quando pensamos nos sonhos bons, nos sonhos verdadeiramente positivos, como o que foi explicitado acima, quem sabe quando se vivencia em sonho uma viagem ou mudança que planeja-se já a muito tempo, quando se encontra com uma pessoa a quem deseja ardentemente dentro de um sonho e se tem lá os mais prazerosos momentos ou uma conquista de trabalho quem sabe. Sim, realizações de desejo. Mas é na controvérsia que esta posição começa a tomar forma e se tornar interessante. Pois após isso, uma questão se mantém: E quanto aos sonhos que não são prazerosos? Aqueles onde algo ruim acontece, ou que simplesmente não se encontra sentido algum.

É neste ponto onde a Psicanálise de Freud, em seus primórdios com o livro “A Interpretação dos Sonhos”, com o qual pensamos hoje, começa a se destacar. Enquanto existem desejos dos quais se tem consciência, com os quais se é possível lidar, falar, expor e buscar; a solução de nossa última questão encontra-se na ideia de que existem no entanto, em nós mesmos, uma série de sentimentos e de desejos com os quais não se é capaz de fazer isso, de lidar, e que vão além do limite do que se é capaz pensar de si. Desejos estes que, quem sabe não se encaixam em uma “auto-idealização”, nesta uma série de palavras, representações e adjetivações que se cria e se mantém para chamar de Eu. Ou às vezes, um tanto mais simples, avessos a outros desejos e decisões que em outro momento se tomou. O drama reside no fato de que ainda que estes desejos se creiam incompatíveis, eles existem.

Vejamos um causo relatado dentro deste mesmo livro já citado, “A interpretação dos Sonhos (1900)” de Freud, quanto a isto dos sonhos desprazerosos e os desejos malquistos, por assim dizer. Não é este o causo mais famoso dentro do livro, mas gosto deste e me parece simples e conciso o suficiente à explicação que se busca aqui, a ele:

“O senhor sempre me diz”, começou uma inteligente paciente minha, “que o sonho é um desejo realizado.” Pois bem, vou lhe contar um sonho cujo tema foi exatamente o oposto — um sonho em que um de meus desejos não foi realizado. Como o senhor enquadra isso em sua teoria? Foi este o sonho:

“Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito. Assim, tive de abandonar meu desejo de oferecer uma ceia.” (FREUD, 1900 pág 106–7)

Afim é claro, de não ocupar todo o espaço com o que já foi escrito por Freud, onde ele extensamente analisa e busca a possível fonte e estimulo na “realidade” do sonho em questão desta sua paciente, resumo: Acontece que, ainda que esta senhora quisesse de fato oferecer a tal da ceia, a ideia não vinha diretamente dela mas de uma amiga a quem havia visitado no dia anterior ao sonho. Nisso, o problema se faz do fato de que esta senhora, que era casada com um açougueiro, na verdade mantinha muito ciúme desta amiga e seu marido (da paciente), pois o mesmo com frequência a elogiava. A nossa paciente no entanto, mantinha a sorte de que sua amiga era relatada como bastante magra, e o marido como um admirador de figuras mais cheinhas. Mas não foram só questionamentos quanto a próxima ceia a ser ofertada de que falaram as amigas em seu encontro, mas a amiga da paciente neste mesmo dia, a relatara de um desejo de ganhar um pouco mais de peso. “E o salmão?” O prato preferido da amiga!

Percebemos aí a questão? Mas é claro que a paciente não quereria oferecer uma ceia para amiga e ajudá-la a ganhar peso, pois assim se tornaria mais atraente para o próprio marido que já mantinha simpatias por ela de antemão. No entanto, mesmo depois de entendida a questão percebe-se que a paciente não sonhou explicitamente com ela, o sonho não se tratou da mesma negando a ceia a amiga e explicando suas razões, brigando com ela ou com o marido, quiçá com ambos, ou ainda descobrindo uma traição, mas veio disfarçado como uma impossibilidade de ofertar a tal da ceia.

Ao mesmo tempo que possamos compreender esta posição da paciente como lógica depois de explicada, é também compreensível poder ser por ela entendido como vergonhoso ou tantas mais outras adjetivações do tipo que a levem a querer na verdade, negar que sente isso. Quem sabe não quisesse se perceber pensando mal da amiga ou ver males no relacionamento com o marido.

“Mas o sentimento de desprazer que assim se repete nos sonhos não nega a existência de um desejo. Todos têm desejos que preferiram não revelar a outras pessoas, e desejos que não admitem nem sequer perante si mesmos. […] Demonstra-se, assim, que a distorção do sonho é de fato um ato de censura. Estaremos levando em conta tudo o que foi trazido à luz por nossa análise dos sonhos desprazerosos se fizermos a seguinte modificação na fórmula com que procuramos expressar a natureza dos sonhos: o sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (suprimido ou recalcado.)” (FREUD, 1900 pág 115)

Ainda que se possa falar muito mais do livro e do tópico em mãos, aqui finalizamos assim; que os sonhos são como um desabafo, às vezes nos mostram nossos mais claros desejos, outras desejos que não sabemos ter, e nessas vezes, quando vêm disfarçados e até quase irreconhecíveis, apresentam questões importantes. A provável motivação pra isso é a de que deve haver então alguma razão particular a esta pessoa para que não consiga aceitá-los, para que precise censurá-los, ou ainda melhor, censurar-se. O trabalho, após descobertas estas questões através desta curiosa possível ferramenta que é o sonho, é pensar “Por que?”

FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: A interpretação dos Sonhos. 1°. ed. [S. l.]: Imago, 2019–1900. 229 p. v. IV.

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Written by Pedro Pazzini

Psicólogo. Entre estudos e reflexões.

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