CONCEPÇÕES DE PODER X VIOLÊNCIA EM HANNAH ARENDT:
Perspectivas para a construção de um futuro de não-violência.

Pedro Pazzini
5 min readMay 4, 2021

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Neste texto, tento brevemente explicar minhas compreensões quanto às elucubrações de Hannah Arendt quanto ao poder x violência, e abrir espaço para pensar um novo futuro, que inicia em mudanças de vocabulário.

Hannah Arendt (1906–1975) foi uma filósofa política judia, nascida na Alemanha, mas que ante a ameaça nazista da primeira parcela do século XX, viu-se obrigada a viver a ultima metade de sua vida longe de sua terra natal, nos Estados Unidos. Polêmica tanto em vida quanto após sua morte; Arendt é melhor conhecida pelas obras “A origem do totalitarismo (1951)” e “Eichmann em Jerusalém (1963)”, dois escritos que trazem perspectivas singulares e de muita riqueza ao pensamento político. Ainda que suas obras tratem de governos, instituições e a política (no seu sentido comum), suas ideias podem ser ampliadas para os mais diversos campos. Estudar-se-á neste escrito, no entanto, a perspectiva de Arendt quanto ao poder e a violência, presente como capítulo no livro “Crises na República (1970–1972)” ou no livro independente “Sobre a Violência (1970)”.

Ao tentar responder a questão motriz deste texto, “o que é o poder?”, não tardamos a nos deparar com argumentações que acabam por aproximar este à violência, como se esta fosse uma clara manifestação do primeiro. De fato, quando se questiona inclusive diretamente se a violência pode ser entendida como uma manifestação de poder, haverá quem responda que sim. Estas noções não se apresentam somente no senso comum, mas também em muitos teóricos políticos, mesmo aqueles de posicionamentos distintos e até avessos.

Arendt, em discordância a essa proposição, decide dedicar seu escrito “A violência” a esta questão. Para a filósofa, o poder não é jamais propriedade de um indivíduo, menos ainda uma habilidade ou dom de um, sendo em verdade um fenômeno social que só existe na condição de união; pela própria: “O “poder” corresponde à habilidade humana de não apenas agir, mas de agir em uníssono, em comum acordo. […] No momento em que o grupo, de onde originara-se o poder (potestas in populo [poder ao povo], sem um povo ou um grupo não há poder), desaparece, “o seu poder” também desaparece” (ARENDT, 1970). Desta forma, já aqui, excluindo a possibilidade da violência ser uma das faces do poder.

Ela argumenta:

“É o apoio do povo que confere poder às instituições de um país, e esse apoio nada mais é que a continuação do consentimento que deu origem às normas legais. […] [as instituições] estratificam-se e deterioram-se logo que o poder vivo do povo cessa de apoia-las. […] (Até mesmo o tirano, aquele que governa contra todos, necessita de quem o ajude a perpetrar a violência, ainda que sejam estas pessoas pouco numerosas.) Entretanto, a força da opinião pública, isto é, o poder do governo, depende dos números; é ela “proporcional ao número a que se associa”, e a tirania, conforme descobriu Montesquieu, é portanto a mais violenta e menos poderosa forma de governo. Certamente, uma das mais óbvias distinções entre o poder e a violência é que o poder tem a necessidade de números, enquanto que a violência pode, até um certo ponto, passar sem eles por basear-se em instrumentos.” (ARENDT, 1970)

A violência distingue-se do poder então pelo seu caráter instrumental e existe, em posição contrária, exatamente nos momentos onde há a falta do poder; tendo em vista que, sendo o poder conferido a alguém através do recebimento de reconhecimento, a violência, ou até mesmo, o lembrar da capacidade de utilização desta, acaba por ter como função a dissuasão e a manutenção de um status quo e/ou de dominação em momentos de inexistência do poder, pois em situação onde este estivesse presente ela não seria nem mesmo necessária. A máxima do poder é exemplificada pelo Todos contra Um, e a da violência pelo Um contra Todos.

Então: “[…] sabemos, ou deveríamos saber, que toda diminuição de poder é um convite à violência — quando pouco porque aqueles que detêm o poder e o sentem escorregar por entre as mãos, sejam eles o governo ou os governados, encontraram sempre dificuldade em resistir à tentação de substituí-lo pela violência.” (ARENDT, 1970)

A violência por si mesma, não se trata necessariamente de algo passível de ser eliminado, pois ela também pode ser proveniente de sentimentos humanos naturais, como a raiva ou a frustração. Recorrer à violência nesses casos é sempre uma opção tentadora pelo seu caráter imediatista e prontidão (É sempre possível socar alguém, e muitas vezes prazeroso). A raiva e violência para Arendt são parte natureza humana e buscar eliminá-las seria também uma forma de desumanizar e castrar os sujeitos. Ela torna-se uma questão, no entanto, a partir do momento em que se busca associá-la a meios de relação humana comuns.

Mesmo em momentos onde almeja-se que a violência seja utilizada de maneira pontual para a resolução de alguma questão objetiva, (em atos revolucionários, ou buscando a “educação” dos filhos por ex.) a violência segue com poucas justificativas, pois sempre corremos o perigo de os meios dominarem os fins. Se os objetivos almejados não forem obtidos tão rapidamente quanto planejado, tudo que se faz é adicionar a violência como método aceitável de resolução de problemas. Como toda a ação, a violência também tem a capacidade de afetar e transformar o mundo, ponto é, a transformação mais provável é em um mundo mais violento.

“Resumindo: politicamente falando, é insuficiente dizer não serem o poder e a violência a mesma coisa. O poder e a violência se opõem: onde um domina de forma absoluta, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder esteja em perigo, mas se se deixar que percorra o seu curso natural, o resultado será o desaparecimento do poder. Tal coisa ‘significa que não é correto pensar na não-violência como o oposto da violência; falar do poder não-violento é realmente uma redundância, A violência pode destruir o poder, mas é incapaz de criá-lo.” (ARENDT, 1970)

Podemos compreender que o exercício primordial áqueles que desejam um futuro de não-violência, embasados por Arendt que nos permite idealizar um novo futuro ideal, coloca-se exatamente em questionar esta cadeia de associações que coloca o poder como parente da violência, assim deixando de naturaliza-la no nosso dia-a-dia; pouco faço por este futuro, se ao prender o dito bandido violento, utilizo também de métodos violentos.

“Se [seguirmos compreendendo que] a essência do poder é a efetividade do domínio, não existe então nenhum poder maior do que aquele que provém do cano de uma arma, e seria difícil dizer “de que maneira a ordem dada por um policial é diferente daquela dada por um bandido armado”(ARENDT, 1970).

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Pedro Pazzini
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Written by Pedro Pazzini

Psicólogo. Entre estudos e reflexões.

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